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sexta-feira, 4 de maio de 2012

O fim do mundo





"Não sendo capazes de enxergá-lo, andamos pelo mundo como se não estivéssemos no Reino." Joseph Campbell, Thou Art That

" – O reino de Deus não vem com aparência exterior. O reino de Deus está dentro de vocês." Lucas 17:20,21.


Esses três mil e tantos habitantes da encruzilhada de Pentecostes, esses três mil que abraçaram a metanoia, tornam-se então, sem qualquer intervalo, os protagonistas de uma impensável utopia – uma utopia de natureza tão radical e exigente que nenhuma literatura anterior ou posterior ousou imitar. É lícito supor que mesmo antes dos gregos os homens sonhavam mundos ideais, e há testemunho de que continuamos sonhando-os através de gente tão diversa quanto Marx e Francis Fukuyama – porém é também lícito supor que nenhum texto ou doutrina humana chegaram ou chegarão a postular uma inclusividade tão singela, arbitrária e escandalosa quanto a que encontramos aqui. “Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum”. Todos. Tudo. Assim, sem rodeios e em absolutos. Depois de ter mencionado, sem qualquer ênfase, que “muitos prodígios e sinais eram feitos pelos apóstolos”, a narrativa se concentra imediatamente nos rigores da nova comunhão – porque aqui, naturalmente, reside o verdadeiro milagre, o sinal último, o prodígio sem precedentes. O próprio Jesus havia se rebaixado à performance de milagres, mas nenhum, absolutamente nenhum, comparável a este. Numa reviravolta de uma doçura sem limites, o sopro interior do espírito consegue fazer o que o irresistível e irrefreável Jesus exterior jamais conseguira. Porque a história conta que nos seus dias terrenos Jesus atraíra para si multidões, mas tratava-se de gente inconstante e sem parada. Abandonavam-no quando a comida acabava, quando os milagres que buscavam eram realizados ou quando o rabi propunha, aparentemente a sério, insanidades como a absoluta prioridade e inclusividade do reino. Traço ainda mais inescapável dessas prévias multidões é que abandonavam-se, deixavam-se aos seus próprios recursos e tomavam cada um o seu caminho, assim que Jesus saía de cena. O Filho do Homem podia até afirmar-se um com o Pai e sonhar com o dia em que seus seguidores compartilhariam entre si dessa integridade, mas as multidões cambiantes que arrastava atrás de si ignoravam por completo esses mistérios e essas prioridades. Isso até agora – porque agora o mesmo narrador conta sem rodeios e sem escrúpulos que todos os que criam tinham tudo em comum. Jesus não está mais literalmente ali, mas está literalmente ali porque seus seguidores são finalmente um. Não é de admirar, em retrospecto, que mesmo diante de seus sucessos espetaculares o rabi tenha adiantado a seus discípulos que quando partisse “fariam sinais maiores do que estes” – porque, incrivelmente, era isso que estava por vir. Já foi especulado que uma comunhão sem critérios e sem restrições como a experimentada por essa primeira comunidade dos discípulos requer explicação mais urgente e mais dentro da lógica. A resposta mais comumente oferecida é que os primeiros discípulos viviam juntos e tinham tudo e comum porque, a partir de indicações fornecidas pelo próprio Jesus, criam na iminência do apocalipse. Se eram irrestritamente generosos uns com os outros era porque acreditavam (equivocadamente) que o fim do mundo estava literalmente próximo. Chegaria, pensavam, “ainda nesta geração”, e esse erro de interpretação teria ocasionado o embaraço de uma comunhão sem limites, que nossa lucidez posterior deveria ser capaz de corrigir. A autoridade dessa explicação é mera aparência, porque ignora que as expectativas apocalípticas dos judeus não diziam respeito a um fim literal e definitivo, mas falavam de um ponto de inflexão, uma virada decisiva, um divisor de águas depois do qual nada mais seria como havia sido. Os profetas falavam dessas coisas antecipando um momento da história em que o lobo moraria em paz com o cordeiro, em que o cabrito deitaria sem perigo ao lado do leão e a criança de peito brincaria em segurança entre as cascavéis. Explicavam que desse momento crítico nasceria uma era na qual os homens converteriam espadas em enxadas e as lanças em foices, uma nova terra em que uma nação não levantaria a espada contra a outra e onde todos abandonariam o aprendizado da guerra. Em suas exposições sobre o fim do mundo, por sua vez, Jesus fala de dores terríveis, de exigentíssimas transições e de uma série de cataclismas e reviravoltas na experiência humana, coisas que qualquer pessoa sensata preferiria evitar – e dizendo assim ele fala literalmente e fala metaforicamente. O fim do mundo deve ser pintado como um evento terrível porque é um encontro sem intermediários com o Real, e depois desse encontro necessariamente nada mais será como era. Ver o mundo como ele é e a identidade como ela é – eis uma conjunção terrível de experiências, algo que procuraremos a qualquer custo evitar. De fato, convém fugir para as montanhas, do contrário seremos absolutamente esmagados pelas exigências da nova realidade. A lição que encontramos nessa virada de Pentecostes é, portanto, precisamente a oposta daquela que a explicação apocalíptica usual nos quer levar a enxergar. Os primeiros discípulos não estão abraçando uma comunhão sem limites porque aguardam o fim do mundo; eles abraçam uma comunhão sem limites porque essa comunhão é precisamente o fim do mundo. Esse novo modo de vida representa o ponto crítico, formidável e sem volta, do apocalipse. Como observado por Joseph Campbell, trata-se do fim literal do mundo que conhecemos, “o mundo do conflito e da competição, da vida que se alimenta de vida”. É o fim do reino e da supremacia da carne, do homem se alimenta do homem. Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. Jesus já havia falado da iminência de um domínio divino a respeito do qual só era possível falar indiretamente, através de comparações. Sobre o reino não se fala a não ser transversalmente, porque “não vem em aparência exterior”, e “o reino de Deus está dentro de vós”. Ou seja, é de suma importância que esse domínio não seja explicado em demasia ou em muito detalhe; é fundamental que nenhum mapa até ele seja esboçado, porque que cada um deve encontrar-se por si mesmo com ele no terreno do coração. Como explica Campbell, ser capaz de enxergar o reino – isto é, olhar para dentro de nós mesmos na condução gentilíssima do espírito e ver o solo preparado para essa impensável conciliação universal e para essa terrena transcendência – é que é o fim do mundo. O fim do mundo é apenas o começo.


http://www.baciadasalmas.com/2010/o-fim-do-mundo/

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